quarta-feira, 22 de outubro de 2008

Enterrem meu coração na curva do rio ou uma história de resistência



Dee Brown é um historiador norte-americano e, embora nunca tenha conseguido emprego como professor, conseguindo, no máximo, ser bibliotecário, é um dos raros bons historiadores norte-americanos que pesquisam sobre a história do país. Realmente, em um país com trajetórias tão podres ao longo do tempo como os Estados Unidos, os bons pesquisadores, pelo menos na historiografia, enveredam para estudar a história de outros povos, como é o caso do Robert Darnton, o historiador norte-americano da Revolução Francesa. Não é toa que o país seja o principal celebrador das teses ditas pós-modernas, que defendem essa fuga irresponsável da história, baseados na idéia de que a história é apenas mais um discurso... É muito cômodo acreditar nisso, quando se vem de uma sociedade que construiu um império as custas de vários crimes contra a humanidade.
Dee Brown escreveu Bury My Heart at Wounded Knee: An Indian History of the American West (1970), (Enterrem meu coração na curva do rio: uma história dos índios do Oeste Americano), e lembro que tive meu primeiro contato com esta obra por volta dos 14 anos, quando o achei na biblioteca de meu pai. A princípio, me chamaram a atenção as ilustrações que são compostas por fotos dos grandes chefes indígenas norte-americanos: Cochise, Geronimo, Nuvem Vermelha, Cavalo Doido, Victorio Touro Sentado, Galha e de vários massacres que aconteceram nas reservas. Fazendo algumas incursões em termos de leitura, logo me encantei também pelas narrativas do autor sobre os conflitos que houveram entre indíos e o exército federal dos Estados Unidos, que destacam a altivez, o orgulho e a nobreza dos guerreiros indígenas.
Recentemente, estive folheando a obra novamente, depois de 11 anos e na condição de historiador. Agora o olhar é muito diferente do que lançei naquela época. Dee Brown realiza uma história bem documentada e pesquisada, com depoimentos, biografias, iconografias e uma ampla revisão da bibliografia sobre o tema. A história oficial, dos brancos, constrói a imagem dos indíos como selvagens, assassinos e responsáveis por vários massacres, inclusive o de Little Big Horn, no qual morreu o general Custer, um genocida que trucidou tribos inteiras, incluindo mulheres, crianças e velhos. Na verdade, Brown mostra o outro ponto de vista. Os indíos estavam defendendo a sua etnia e suas terras, que eram alvo de cobiça por causa dos veios de ouro e por ser estrategicamente bem situada para a implantação de ferrovias. Essa é a história de uma resistência e da sistematização da opressão contra os nativos, que confinados em reservas, tinha que ser submeter a religião cristã, a rações diárias de comida e a doenças causadas pela insalubridade, como coqueluches, impaludismos, sarampo e gripes. A lógica é que o governo percebeu que era muito dispendioso enfrentar os indíos em conflitos armados e passou a usar subterfúgios para uma aniquilação gradativa, realizada aos poucos. Recentemente, o filme foi lançado aqui e ontém eu o assisti. È uma película fantástica, tocante e fidedigna ao conteúdo do livro. Não darei detalhes sobre o filme, assistam e tirem suas conclusões. Uma das cenas que mais revoltam é o assassinato de Touro Sentado, já velho, que é executado pelas tropas do governo na frente de toda a família. Esses crimes precisam ser lembrados, esses silêncios que permeiam a história do ocidente. E aos historiadores que vem sendo criticados por se preocuparem em a fazerem por esses medíocres profetas da pós-modernidade, que querem desarmar a história, fazer da história seu divã para tentar resolver suas neuras sexuais e esvaziar a prática historiográfica de suas implicações éticas e epistêmicas, aconselho que resistam também a esse oportunismo retórico.


Um desses gurús do discurso, publicou mais recentemente o texto "Por uma leitura safada deThompson", uma crítica a um importante historiador inglês que desde o começo disse estar comprometido com essa denominado história vista de baixo, ou seja, a história social.
Essa idéia de "leitura safada", segundo Durval Muniz, autor do texto, baseia-se na premissa de que os autores devem ser dessacralizados, na esteira do que afirmou Roland Barthes. Confrontei essa sua afirmação com outro texto seu, chamado "A história em jogo: a contribuição de Michel Foucault no campo da historiografia", e é impossível levar a sério essa idéia de leitura safada de Thompson, pois munido de uma série de argumentos que beiram ao irracionalismo estético, Durval Muniz ergue, ao mesmo tempo, um altar de veneração e um pódio para coroar seu campeão favorito, ao passo que para os outros competidores, derrotados, só restaria aplaudir o filósofo Michel Foucault, pois ele é, segundo o autor,
“da genealogia dos craques, dos fora de série, daqueles que, mesmo quando são nosso adversário, só nos resta sentar e aplaudir”.

Isso significa constatar que toda essa ousadia dessacralizadora, reivindicada por Durval Muniz, tem uma conotação e limitação mais pessoal, do que propriamente epistêmica. Seus ídolos teóricos, caso existisse alguma coerência em sua fala, deveriam então ser os primeiros a serem submetidos a essa sanha desconstrucionista, a esse exercício intelectual violador. Quem quiser ganhar visibilidade através de polêmicas sensacionalistas, que arque com as conseqüências daquilo que falou e tenha o mínimo de coerência com suas próprias posições. Mais uma vez, percebe-se que Durval Muniz é tão tendencioso e silenciador, em relação à historiografia que não condiz com seus recortes ou prioridades, quanto aqueles que acusa de quererem aparecer como donos da verdade, de agirem como crianças emburradas que, sendo donas da bola, só permitem entrar no jogo quem elas escolhem.
Nesse sentido, esse relativismo cético termina por desembocar em sua principal fragilidade: a de não possuir em eixo seguro que lhe proporcione consistência. Fadado a infidáveis contradições, tais quais as de Hayden White, dos desconstrucionistas radicais ou do autor citado, adquire um tom irresponsável, que ao leitor mais atento, pode ser revelado simplesmente por uma confrontação de textos na qual se meça o que foi dito/especulado teoricamente e o que se tem praticado. É preciso, realmente, refutar esse ceticismo, dito pós-moderno, discutir seus limites políticos, morais e cognitivos, como colocou Ginzburg, e perceber que o que norteia os passos do historiador nas trevas que repousam o passado, é antes de tudo uma busca cognitiva, do que uma poética do absurdo, que talvez esteja mais a favor de uma safadeza retórica do que, propriamente, leituras safadas.


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